Opinião

Enfermagem: profissão coragem

A face da Enfermagem que você não conhece. O olhar do profissional que está dentro da UTI COVID-19 e vê, todos os dias, a realidade da doença. As escolhas, a rotina, as saudades, as dificuldades. Trazemos o relato real de uma enfermeira, que está com COVID-19, e narra a pressão de trabalhar em três hospitais para sobreviver.

Conheça Luísa Silva*: 25 anos de idade, passou cinco anos na universidade, cursando Enfermagem, em Fortaleza (CE). Formou-se no segundo semestre de 2019 e está terminando duas pós-graduações: Enfermagem em Urgência e Emergência e Enfermagem em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Quando decidiu pelo curso o pai foi contra: “Porque não faz medicina, enfermagem não dá dinheiro!”. Ele continuou bradando, Luísa engoliu o choro e mudou-se para a casa de uma tia. Começou a fazer Residência no Instituto Dr. José Frota, um dos hospitais públicos referência em traumatologia e queimaduras. Logo no primeiro momento atendeu em UTI. Em março de 2020, com a chegada da pandemia, Luísa também passou a trabalhar no Hospital Estadual Leonardo da Vinci, exclusivo para o atendimento aos pacientes da COVID-19 e, ainda, no hospital de campanha, construído para atender casos de coronavírus, no Estádio Presidente Vargas, em Fortaleza. Uma rotina pesada de trabalho e uma situação semelhante à de guerra. Luísa vivenciou as mortes que chegavam, dezenas por dia. Viu colegas desistindo da profissão por medo de infectar a família e outros em pânico, por medo da morte. Quinze meses depois, mesmo tendo tomado as duas doses da vacina Coronavac, ela foi infectada pelo novo coronavírus e está isolada em um quarto de hotel para não contaminar a tia.  Luísa retrata, em entrevista exclusiva, as dores e as alegrias que a pandemia tem deixado. Um rastro que desromantiza a profissão e coloca a enfermagem como uma das profissões mais injustiçadas do Brasil. A história de Luísa traz consigo os inumeráveis que morreram e os que continuam lutando, além de uma reflexão sobre falta de enfermeiros antes e durante a pandemia. O caos na saúde merece olhares mais atentos. Olhares de cuidado e respeito.

JE: Como foi a sua escolha pela profissão? Você teve apoio da sua família?  Você chegou a se decepcionar?

Luísa: Foi bem louco! Eu sempre quis cuidar das pessoas, sabe? A primeira vez que falei que queria Enfermagem eu ouvi: “Enfermagem? Nem dá dinheiro. Faz medicina logo”. “Enfermeira? Passar o resto da vida limpando a bunda das pessoas? Sem futuro, viu?”. “Enfermagem? Oh mulher, faz logo medicina”. Ouvi de pessoas de grande importância (pai, vó, madrinha). Uma das únicas pessoas que sempre acreditou mesmo foi minha mãe. Ela que disse “Pois faça minha filha. Faça e cuide de mim.” (risos). Então chegou o vestibular. Acredita que eu passei Universidade Federal do Ceará e deixei passar? Ganhei uma bolsa de cursinho preparatório para medicina em um grande colégio aqui de Fortaleza e fiquei lá por 6 longos dolorosos meses. Foram os piores meses. Muita pressão. Não podia e nem deveria fazer nada além de estudar pra ser médica. Meu namorado, na época, e a família dele me ajudaram demais. Eram meu esconderijo. Sou grata por isso.

Até que um dia, no cursinho, conversando com minha irmã, contei tudo e ela simplesmente fez minha inscrição em uma universidade privada aqui em Fortaleza. Eu passei e fui, com a cara e coragem. Porque dinheiro mesmo, não tinha um real. Consegui FIES 100%. Contei para a família. A decepção foi nítida nos sorrisos falsos que deram. Mas eu estava feliz. Eu tinha pessoas ao meu lado. Ao longo dos anos foram vendo, através de mim, o que é realmente a Enfermagem e passaram a me apoiar. Formei com uma dívida do FIES imensa (pensar no pagamento já me tira o sono), sendo bolsista de iniciação científica do Ministério da Saúde, monitoria institucional da Universidade de Fortaleza, com honra ao mérito. Formei. Enfermeira. Orgulho. Meta. Felicidade.

Não cheguei a me decepcionar com a profissão. Me decepciona a desvalorização que temos, sabe? Somos os profissionais que passam mais horas na beira do leito do paciente. Tem colegas de trabalho que nem visitam os pacientes todos os dias. Nós, não. São banhos, curativos, medicamentos, alimentação, aniversários, nascimentos, mortes, lágrimas, sorrisos. Somos nós. Nós estamos ali. Merecemos mais.

Ah, se não fosse a enfermagem você não teria a bunda limpa, né? Sempre bom lembrar.

JE: Como foi sua rotina nesses meses? Você trabalhou em quantas unidades ao mesmo tempo (dentro das escalas) e qual foi a forma de contratação: seletista, cooperativa?

Luísa: Minha rotina foi casa – hospital – casa. No momento, eu estou afastada por 14 dias com COVID, isso conta como férias? (Risos) Desde março do ano passado, dia 23, eu não tenho férias ou recesso ou algo que não seja trabalho e estudo. Dou 12 horas, 24 horas e, às vezes, 36 horas de plantão seguidos. Descanso 12 ou 10 ou 20 horas e vamos que vamos novamente. Eu vivo exausta. Com sono, humor ruim, dores nas costas, membros inferiores inchados. Sou ausente em casa na hora do café da manhã, almoço, jantar… Perco meus cachorros crescendo, descobrindo coisas novas, passeando. Perco dias com minha família. Isso me dói. Eu sinto falta de ser presente, sabe? Choro com saudade de casa. Com saudade da minha mãe, minha tia, meus cachorros, minha cama. Sinto tanta, tanta falta. Estou tão cansada! Já trabalhei em três locais ao mesmo tempo! Atualmente estou em dois. Já passei 10 dias sem dormir em casa. Hoje fico só uns dois, as vezes três, acho um luxo até! Mas isso é escravidão. Isso é desumano. E porque nos submetemos a isso? 20 plantões para ganhar R$ 2.800,00. Dá pra acreditar nisso? Ah, mas porque você não trabalha em hospital privado? Ok, podemos. Ganhamos três mil e pouco por todos os dias manhã ou tarde, mais dois dias inteiros no mês ou trabalhamos a noite, uma noite sim, duas não, mais dois dias inteiros no mês. Então, precisamos sim ter dois, três empregos. Pelo SUS, trabalhamos por cooperativa (estamos esperando o lançamento de alguns editais para concursos, mas o valor também decepciona) e em hospitais privados participamos de seleções. Mas com toda sinceridade, é exaustivo e nos faz repensar se queremos isso para nossas vidas. Vamos viver somente trabalhando? Não temos vida social como as demais pessoas? Isso realmente vale? No auge da exaustão, ficamos pensativos.

JE: Você citou as cooperativas. Na sua visão, há política nas escolhas de profissionais?

Luísa: Minha visão é triste, pois ela pega a realidade. As cooperativas nos pagam da pior forma possível. Quando vamos iniciar, fazemos um curso onde eles deixam explícito que não temos direito a nada e ganharemos por plantão. Então, uma dica: não fiquem doentes. Se adoecermos, como eu estou agora com COVID, não recebemos nada. Nem para os remédios. Se há política? (Risos irônicos). Somente o que há em nossas contrataçõe, é política. É POLÍTICA. Seja cooperativa, seleção, SUS, privado. Eu posso contar nos dedos, e apenas de uma mão, os colegas que conseguem algo sem serem indicações. Eis uma decepção com a enfermagem, sabe? A não valorização. Nossa venda. Nosso suborno. Se você tem alguém forte, você tem um emprego forte. Tudo funciona por indicação. Por política. O conhecimento que o profissional possui é o que menos importa. E isso é nojento. Mas, se você quer trabalhar e ter como se sustentar, engula. Não ache nojento. Sorria e participe do sistema (e agradeça por mais um mês de emprego). Ah, vale lembrar que nesse meio também temos que ser surdos e mudos. Ouviu ou falou demais, está fora! Reclamou de condições de trabalho? Fora! Reclamou de salário? Fora! Deu sugestões que os chefes não gostaram? Fora! Expôs a realidade? Fora! Você anda na linha. E a linha são eles quem traçam. Por que acha que estou falando de forma anônima?

JE: O que mais te assustou e o que te deu forças para enfrentar esses 14 meses?

Luísa: A UTI COVID é assustadora. Tudo, absolutamente tudo, é mais grave. Eles praticamente não ficam estáveis como os demais pacientes de UTI. Sempre são uma caixinha de surpresa. Um infarto, um trombo, um acidente vascular cerebral, um pulmão ruim sem conseguir realizar trocas gasosas, um ventilador mecânico no seu máximo sem conseguir dar a resposta necessária. Entenda, nas UTI’s não-COVID, pacientes podem receber visitas todos os dias. Mesmo intubados, sedoanalgesiados, alguém pode ir ali segurar as mãos e fazer com que sintam que não estão sozinhos. Na UTI COVID, não. Aliás, não só na UTI. A partir do momento que você precisa ficar internado por COVID-19, você está completamente sozinho. Sem celular, sem meio de comunicação. É só você, Deus e nós, profissionais. Eu já vi tantas dores, tantas lágrimas, medos, desespero. Eles precisam de amor. E nós precisamos devolver o pai, a mãe, o irmão, a prima, o tio de alguém para suas famílias. Vivos. Novamente aos seus lares. É isso. É sobre isso: devolver o amor de alguém para alguém.

JE: Você chegou a ver colegas desistindo por medo de morrer, ser infectado?

Luisa: Sim. Cheguei a ver colegas desistindo no primeiro dia. Outros no primeiro mês. Cheguei a ver colegas morrendo. Perdi amigos para a COVID. Eles se contaminaram tentando salvar a vida de várias pessoas. Isso ainda é uma realidade. Então não digo que foi duro. Digo que é duro. Abri a primeira UTI do nosso hospital referência em COVID. Recebi o primeiro paciente. Na hora de ir embora, dezenas de familiares na porta do hospital. Pedindo até pelo amor de Deus por uma notícia. Aquela pessoa está viva? Está intubada? Onde ela está? Ninguém que não tenha passado por isso sabe o que é nossa dor. E aos que dizem que podem imaginar, digo, vocês não podem. Nem devem. Fiquei em isolamento. Até hoje não abraço meu pai. Vocês sabem o que são 14 meses sem abraçar o pai por medo de contaminá-lo? Ia sair de casa. Morando com minha tia, eu era um risco para ela, mas ela não deixou. Nosso amor e empatia nos fizeram ficar juntas. Até que chegou o dia. Ela adoeceu. Está positiva para a COVID-19. Fui eu? Eu contaminei uma das pessoas que mais amo? Ela vai morrer? Ser intubada? Meu Deus, o que está havendo? O que eu vou fazer? Eram perguntas recorrentes na minha mente. Troco dias de plantão. Fico com ela. O medo de me contaminar já não importava mais. Ela precisava viver. Tratamos. Foi difícil, foi duro, mas ela passou por isso. Dois dias depois que ela ficou bem, minha mãe liga. Ela e meu padrasto estão doentes. Positivos p/ COVID-19. O que era aquilo? Não há leitos. O que vou fazer? Agora eles dois? Eu vou perder os dois? Não posso chorar. Não posso ficar nervosa. Tenho que ser firme. Eram meus outros pensamentos. Tratamos. Eles estão vivos. Enquanto isso, eu chorava escondida com o chuveiro ligado. Chorava indo e voltando para o plantão, ao deitar para dormir, indo ao supermercado. Chorava. Tremia. Implorava a Deus, com toda minha fé, que por favor, só curasse eles e protegesse o resto da família. Eu podia adoecer. Eu poderia morrer. Eles não, por favor Deus! Eles não. É só o que pedia e sabe, peço até hoje. E em meio a tudo isso pessoas da família, que moram ao nosso lado, dizendo coisas bem fortes. “Sei que é o seu trabalho, mas você é muito irresponsável em trabalhar com isso.” “Dá para fechar a janela para o vírus não passar aqui para casa?” “Você é a culpada se sua tia morrer.” “Mesmo assim, você não vai sair de casa?”. Isso simplesmente me acabou, me deixou em destroços por dentro. Além de tudo isso, tinha o medo de ficar realmente infectada e ficar ali, naquela situação e naquelas camas. Trabalhar com COVID-19 é trabalhar com o medo diário de ser você o próximo a ser intubado, reanimado e embalado em um saco preto.

JE: Como você via sua profissão enquanto acadêmica e como vê agora?

Luísa: Era completamente diferente. Eu me formei numa universidade particular e lá todos os professores são completamente apaixonados pela enfermagem. Eles falavam a realidade, mas era com um amor tão grande que a gente não imaginava o sofrimento. Eu, enquanto acadêmica, achava que teria tempo, sabe? Que trabalharia para viver melhor. Mas agora? Eu vivo somente para trabalhar. Vivo sem tempo, família, lazer. Vivo exausta. Estamos exaustos. Pedindo socorro a um sistema que se finge de cego para nós.

JE: O que o Brasil não sabe verdadeiramente sobre a vida (e morte) durante um plantão?

Luisa: Escrevi e apaguei essa resposta algumas vezes já. Por onde começo? Vida ou morte?  Vamos lá. Em um dos hospitais que trabalho há um projeto de humanização lindo. Mesmo o paciente intubado, colocamos um papel colado em seu leito com a frase: “ele é o amor da pessoa X e da pessoa Y, sua filha e mulher. Elas estão te esperando, seu Z! Melhore logo!” E também colocamos fotos quando a família atrás. Buscamos a fé e o amor para sempre nos conectarmos. Isso me deixa arrepiada, sabe? É forte ler isso e olhar para alguém intubado, com sedoanalgesia alta, drogas vasoativas e um ventilador mecânico dando seu máximo. Eu só falo, baixinho: por favor Deus, seu Z precisa viver. Mas acabo falando isso em cada leito. Às vezes me pergunto se Deus não olha para mim e pensa “de novo, querida?”.

Pacientes graves: Pronamos, supinamos, coletamos gasometrias, mudamos paramentos nos ventiladores, vazões de drogas. Tudo. Não adianta. Paciente entra em PCR (parada cardiorespiratoria). O chamado: “Paciente parou, traz o carrinho. Leito tal”. Compressões, Adrenalinas, choques. 5, 8, 11, 14 ciclos. Vamos lá gente, não podemos perder ele. Mais um ciclo gente, vamos lá. Às vezes ele vive. Conseguimos. Vitória. Ufa! Valeu, Deus. Valeu, equipe. 1×0 para a vida. Outras, não. A morte nos ganha. Já chega gente, já fizemos de tudo. Ele não vai voltar. Eletrocardiograma. Hora do óbito. Obrigada, equipe. Preparar o corpo: desligar o ventilador, as drogas. Retirar sondas, acessos, tubo. Higienizamos o corpo. Colocamos algodão na boca, nariz, ouvidos, ânus. Fechamos os olhos. Juntamos as mãos e pés com ataduras. Colamos no peito um papel com o nome completo, data de nascimento, nome da mãe, data e hora do óbito. Enrolamos o corpo em um tecido branco, com o cuidado de deixar o rosto com acesso fácil para reconhecimento. Fechamos com esparadrapo impermeável. Enrolamos em um saco transparente, grosso. Fechamos a “boca do saco” firme, com esparadrapo impermeável. Colamos mais um papel de identificação. Pegamos um saco preto, com zíper. Colocamos o corpo dentro. Fechamos o zíper. Colamos dois papéis grande:

1- CUIDADO! RISCO BIOLÓGICO CLASSE 3 – COVID-19

2- IDENTIFICAÇÃO DO CORPO, Novamente.

Ligamos para o responsável que fica no container de corpos. A câmara fria, sabe? Está lotada. Não cabe mais um corpo. Ok. Vamos deixar no leito. Até a família reconhecer e a funerária chegar. Plantão segue. Passamos pelo corpo, damos assistência ao outro paciente ao lado do corpo, tudo ao lado do corpo. Se a família mora longe, sentimos o odor do corpo. Mas não podemos parar. Em hipótese alguma podemos parar. Temos outras vidas. Família chega para reconhecer. Nossa porta é de vidro. Maqueiro coloca o corpo em uma maca e leva até a porta. Porta fechada. Abrimos os sacos e colocamos somente o rosto para fora. Um grito. Choro. Desespero. Esposa, filha, mãe, estão tendo que reconhecer seu amado, com algodão nos ouvidos, boca e nariz. Morto. Rígido. Gelado. Roxo. Senhora, por favor não encoste na porta. Essa área é de COVID. Está contaminada. E, engolindo o choro com um nó na garganta, ouvimos: “Pelo amor de Deus! Sofreu?” Choro, gritos. As pessoas perdem as forças, caem de joelhos. Choram desesperadamente. Nós não podemos tocar. Abraçar. Colocamos nossa mão no vidro, pelo lado de dentro e só pedimos calma. Fechamos os sacos. Recuamos com o corpo. Funerária chega. Corpo no caixão. Lacrado. Fim. O seu Z morreu. Essa foi a despedida da família. Vá em paz. Que Deus receba o Senhor. Respiramos fundo. Engolimos o choro. A garganta dói. As mãos tremem. Calma. Temos mais leitos esperando por nós. Leito limpo. SAMU entra com outra pessoa. Nova história naquele mesmo leito. Nova vida. Nova família. Novo amor. Nova luta.

Precisamos intubar. Está muito mal. Explicamos o procedimento. Paciente olha pra gente e diz: “Diga para meu filho que o amo. E que tem dinheiro na minha bolsinha preta, na cozinha.” Essa paciente nos marcou. Intubamos, pronamos, puncionamos CVC, PAI. PCR. De novo, Deus? Sim, de novo. Mas calma, ela viveu. 13 dias. Extuba! Puxamos o tubo da sua boca e todos rindo felizes, falamos: “Dona, bem-vinda de volta!”. Arrepiados. Emocionados. Ganhamos contra a morte! É isso. Reabilitação. Melhora clínica. Alta hospitalar. hoje tem festa, Palmas, música, risos. Tem uma família naquele mesmo lugar, naquela mesma porta, mas agora esperando alguém vivo! Corredor de palmas, músicas e sorrisos. Com os olhos marejados e a garganta com um nó eu escrevo isso o vocês. E digo: CONSEGUIMOS! Pessoas de alta, de volta a vida. É por isso amigos. É por isso, pra isso é sobre isso. A vida. O amor. Cada dia vale. Cada batalha vale. Tudo vale pela vida.

JE: Qual a cena mais forte que você viveu nesse período?

Luísa: Ano passado, início da pandemia. Tínhamos chuvas de óbitos. Eram muitos em um plantão. Até que em uma noite não deu tempo de levar um por um para fora da UTI e foram empilhados. Sim. De três em três corpos. Um em cima do outro na maca. Gente, UM CORPO EM CIMA DO OUTRO EM UMA MACA. Corpos saindo empilhados em sacos pretos. Ficando em um corredor. Eu não conseguia falar ao final desse plantão. Eu apenas chorava. Calada. Sem som. Minhas lágrimas escorriam pelo meu rosto e pescoço. Sem som. Somente dor.

JE: Você está com COVID. Tem noção de como aconteceu? Você optou fazer o tratamento em casa. o seu empregador sabe? Que apoio te deram?

Luísa: Estou no 8° dia de COVID. Vacinada com duas doses da vacina Coronavac, com o exame de soroconversão reagente e infectada por uma das novas cepas. Uau. Isso é forte e assustador. Eu avisei aos amigos médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e técnicos. Pedi para, caso aconteça algo mais grave comigo, cuidem de mim. Não usem um tubo muito grande e mudem meu decúbito. Eu durmo e acordo com um medo imenso, todos os dias. Eu tenho plena certeza de como e onde aconteceu. Como já falei, trabalho em dois locais. Um é humano, empático. Outro é completamente o oposto, só visa o trabalho. Foi lá que adoeci. Iniciei o trabalho lá em um setor construído somente para paciente com COVID-19. Com a baixa dos casos recentemente, o setor foi mudado e agora internamos pacientes sem COVID-19. Mas eles internam os pacientes lá sem a certeza de um exame negativo para COVID, pois coletam o swab, mas não esperam o resultado. A farmácia da instituição nos oferece máscara N95 de 15 em 15 dias. Porém com a mudança de pacientes do setor, eu fui pegar máscara e fui barrada. Informaram que, como meu setor não era mais COVID, eu não precisava de N95. Poderia trabalhar com máscara simples mesmo. No dia seguinte, dois pacientes apresentaram exames positivos para COVID-19. Eu já estava há três dias com esses pacientes, aspirava, alimentava, tudo. Seis dias depois, eu comecei com sintomas de sinusite. Febre alta por três dias. Dores intensas pelo corpo, cabeça. Extremidades inchadas. Vários exames. Swab detectável para COVID-19. Estou positiva. Sai de casa, meu familiar ainda não é vacinado. Estou sozinha em um quarto de hotel. Doente. Sozinha. Sinto falta de ar. Mas a vacina protege bem a parte pulmonar. Minha saturação não baixa de 90%. Obrigada PESQUISADORES. UNIVERSIDADES. SUS. VACINA. Eu poderia estar intubada. Graças a ciência, não estou. Estou me recuperando rapidamente. Realizei o tratamento padrão prescrito pelo médico: azitromicina mais ivermectina, xarope para tosse, analgésico e antitérmico. A instituição que me negou a máscara, está preocupada somente em ter algum substituto para meus plantões e com a entrega do meu atestado em até três dias úteis. Mas não posso falar nada, nem reclamar, nem passar de 15 dias de atestado. Lembram porque, né? Se eu fizer essas coisas, estarei fora. Preciso do emprego. Já a outra instituição, me deu total apoio. A chefe fala comigo todos os dias e que estão com saudades e esperando por mim. Como sou grata a essa equipe e a esse hospital. Queria expor aqui o nome de cada um, como um imenso agradecimento. Acho que é isso. Não é fácil falar tudo isso. Dói.

*Nome preservado, diante os relatos que vão mostrar a enfermagem como poucos já viram.

Profissionais contaminados

Os profissionais que, diariamente, estão na linha de frente do combate a COVID-19 podem encontrar maior risco de contaminação em seus ambientes de trabalho, hospitais e clínicas que recebem dezenas de pessoas doentes todos os dias. No entanto, há o risco de serem infectados na locomoção de casa para o trabalho, em transportes públicos, onde o nível de aglomeração não tem controle.

A Organização Mundial da Saúde apontou, em relatório no último mês de abril, os riscos que alguns profissionais sofrem em serviços de saúde em que trabalham. Como por exemplo, identificação tardia de casos suspeitos de COVID-19, atuação em setores de alto risco, jornadas prolongadas, baixa adesão a práticas fundamentais como a de higienização das mãos e falta ou uso inadequado dos equipamentos de proteção individual. Como vimos, o relato de Luísa, parece seguir um triste e lamentável padrão.

Na Inglaterra, o governo investiu em medidas emergenciais para expandir a força de trabalho de enfermagem durante a pandemia de COVID-19. O país convocou enfermeiros que estavam afastados a voltar às atividades, convidou profissionais que não atuavam mais na área clínica a voltarem aos atendimentos, e permitiu que os estudantes de enfermagem pudessem realizar os seis últimos meses de sua graduação desempenhando uma posição clínica. Os dados são do Royal College of Nursing.

 

por Flávio Liffeman

Jornalista

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