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Um cheque sem fundos para pagar o piso da enfermagem?

Solução efetiva para o custeio das despesas exigirá debate de alternativas concretas e federativas

Congresso Nacional aprovou, no final de 2022, a Emenda Constitucional 127 para viabilizar financeiramente o pagamento do piso da enfermagem, criado pela Lei 14.434/22. A nova lei estabelece, como mínimo para os enfermeiros, o salário de R$ 4.750; para técnicos, 70% desse valor, e para auxiliares e parteiras, 50%. A nova emenda constitucional tem boas intenções, ao buscar alternativas para compensar o impacto fiscal nos orçamentos das diversas entidades afetadas pelo piso. Mas o diabo mora nos detalhes.

O total de valores a compensar, na implantação do piso, é de R$ 12,5 bilhões anuais. Esse valor corresponde ao impacto que os novos salários terão sobre as folhas de pagamento das entidades na área da saúde. Os valores anuais a compensar afetam todos os tipos de contratantes. Entidades privadas são as mais atingidas com R$ 4,79 bilhões, entidades da administração pública devem desembolsar R$ 4,08 bilhões e as entidades sem fins lucrativos são impactadas em R$ 3,5 bilhões. Como o SUS contrata serviços junto às redes privada e filantrópica, deverá arcar com R$ 7,8 bilhões por ano.

A assistência proposta pela emenda pretende resolver apenas uma parte do problema: o custeio do aumento de despesas no setor público. Para tanto, indica o superávit financeiro dos fundos públicos da União como fonte de recursos para bancá-las. A boa intenção do legislador, entretanto, esbarra em, ao menos, dois obstáculos que tornam essa fonte inadequada e a solução, inconsistente.

O primeiro reside no fato de que o superávit financeiro dos fundos públicos é um fenômeno contábil, uma conta patrimonial que não corresponde ao ingresso de recursos novos na conta do governo. Ou seja, é a velha máxima do cobertor orçamentário curto, usam-se os recursos dos fundos para cobrir a cabeça deixando os pés descobertos, sem aumentar o tamanho do cobertor.

O segundo obstáculo é que a implantação do piso corresponde à criação de despesa recorrente, cuja cobertura não pode estar dependente de fonte incerta de financiamento, como é o caso dos superávits dos fundos. O artigo 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal, a propósito, estabelece que os efeitos financeiros de despesas obrigatórias que se estendam por mais de dois exercícios, caso afetem metas de resultados fiscais, devem ser compensados “pelo aumento permanente da receita ou pela redução permanente da despesa”.

É de se prever que a utilização de saldo do superávit financeiro dos fundos da União, como propõe a emenda constitucional, provocará uma piora na situação fiscal, com impacto sobre o resultado primário. Para evitar a deterioração das contas públicas, o governo estará novamente diante de uma encruzilhada: exigir contingenciamento de outras despesas e comprometer a execução de outras políticas ou tentar aumentar a carga tributária.

A realidade é que a emenda constitucional que pretende custear o aumento do gasto com piso da enfermagem, recorrendo ao dito superávit dos fundos públicos, na verdade, equivale a assinar um cheque sem fundos. Uma solução efetiva para o custeio das despesas que a nova lei cria exigirá, ainda, o debate de alternativas concretas e federativas — medidas que possam conferir viabilidade e previsibilidade no financiamento do piso da enfermagem, bem como na execução do orçamento público.

Realocação de fundos federais finitos para tentar custear gastos duradouros, como salários, afetará ainda mais a capacidade do governo em manter expectativas favoráveis em torno da economia brasileira, justo quando tem a oportunidade de atrair fortes investimentos estrangeiros. É preciso conciliar responsabilidade social com fiscal. Não adianta passar cheque sem fundos para pagar compromissos certos.

 

Fonte: Jota Info

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-cheque-sem-fundos-para-pagar-o-piso-da-enfermagem-15022023

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