Opinião

Como Tratei os Yanomamis

O relato de uma enfermeira que há anos trabalha em defesa da saúde dos yanomamis em Roraima

A cabo de voltar de um período de 25 dias em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Entrei no dia 17 de janeiro deste ano para realizar todo tipo de tarefa: tradução, atendimentos, resgates, intermediação de conflitos. Havia cerca de oitenta yanomamis internados no posto de saúde – muitos deles crianças, em estado apático e com o corpo esquelético. Por vezes, perdíamos a batalha, mas não havia tempo para sentar e chorar: o que importava era não deixar mais um yanomami morrer.

No dia a dia eu tento fazê-los sorrir: xingo imitando as velhas yanomamis, falo alto. Entre um atendimento e outro, também conto e ouço histórias na língua yanomam. Mas a realidade ainda é muito dura: o frio nas noites geladas, o posto lotado e os resgates que não param. Acordamos cedo e dormimos tarde, isso quando não temos que passar a noite com pacientes graves. Com o correr dos dias, algumas crianças ganham força. Quando eu passo, me chamam – “Opoxina! Opoxina!”–, depois se escondem atrás das próprias mãos e finalmente dão um sorriso. A força que esse povo carrega é impressionante: resistem a várias situações que matariam qualquer um de nós.

Sou de Minas Gerais. Quando comecei a trabalhar com os yanomamis, dez anos atrás, eu tinha 29 anos. Havia um único médico para todo o território – um disparate, já que a área é maior do que Portugal. Aquele era o meu primeiro emprego como enfermeira. Eu andava com vários livros de condutas médicas na mochila, mas aprendi rapidamente que ali dentro a gente tem que ser um pouco de tudo. O meu primeiro caso grave foi um ferimento por arma de fogo, com espingarda. A região das serras, dentro da Terra Indígena Yanomami, é conhecida por antigos conflitos comunitários em uma sociedade em que os valores principais são a honra e a coragem.

Lembro bem daquele dia. Eram sete da manhã quando os yanomamis bateram na porta do posto de saúde nos chamando para atender um jovem que fora atingido pelos inimigos. Me lembro do colega, técnico de enfermagem, tremendo enquanto arrumava a maleta de emergência, nós dois iríamos até a aldeia buscar o ferido. O meu coração entrou em taquicardia, principalmente pelo medo de outro conflito. Chegando na metade do caminho, encontramos o jovem ferido sendo carregado numa rede; suas vísceras estavam expostas. Realizamos os primeiros socorros ali na trilha, dentro da floresta, e depois seguimos com ele, na rede, até o posto, onde chamamos o resgate aéreo para levá-lo ao hospital. São tantos os perigos que a gente enfrenta que é impossível ficar pensando nisso o tempo todo, o próprio percurso aéreo é um grande teste de fé. Já perdi a conta de quantas tempestades peguei em aviões pequenos que tremem feito barco em alto-mar, ou das inúmeras clareiras pequenas, recémabertas na mata, em que pousamos de helicóptero para salvar uma vida.

Passei um ano sendo escalada para trabalhar em diferentes locais da Terra Indígena Yanomami. Foi ótimo pela experiência, mas eu sentia que precisava encontrar o meu próprio lugar lá dentro. Havia uma comunidade isolada sobre a serra, na qual viviam grupos yanomamis de pouco contato, com hábitos seminômades. O acesso era feito somente por helicóptero e o posto de saúde era precário demais. Ali seria o meu lugar. Na primeira entrada, visitei todas as aldeias a pé, acompanhada pelo agente de saúde de cada uma delas. Eu caminhava até doze horas por dia com os yanomamis, para chegar a aldeias que eram antes visitadas somente por helicóptero. Eles viam isso como um sinal de respeito, assim como o fato de eu dormir com eles no tapiri (um acampamento erguido no meio da floresta).

Acho que acabei provocando uma mudança no comportamento daqueles yanomamis. Antes de eu ir trabalhar lá, muitos colegas diziam que eles quase não iam ao posto. Depois, vários passaram a ir, já não tinham medo da napëyoma (mulher não yanomami), porque a napëyoma havia visitado as suas casas, dormido próximo ao fogo feito por eles e cantado junto com eles à noite, nas festas cerimoniais. Foi assim que recebi meu nome em yanomam: Opoxina, que é uma espécie de colar feito com um rabo de tatu. Tem um motivo: as crianças pequenas, mais ou menos de 3 a 6 anos, andam com uma opo xina pendurada no pescoço, para proteção contra doenças e outros animais. Eu também passei a usar, o que provocava um riso geral nos yanomamis. Mas eu explicava a eles que na floresta eu preciso de proteção igual a uma criança.

Todas as vezes em que sobrevoo o território yanomami e olho aquele imenso tapete verde, eu sinto uma profunda honra. As pessoas não sabem da infinita diversidade cultural que existe no nosso país, talvez porque muitas olhem para a Amazônia como um amontoado de árvores – não conseguem enxergar a quantidade de seres vivos e invisíveis que vivem ali. Esses povos originários resistem há mais de quinhentos anos para manter o seu modo de vida e preservar a sua casa – e isso é algo que sempre me motivou a lutar por eles e pelo nosso futuro. O Brasil é terra indígena e o sangue que corre nas nossas veias tem a força dos nossos ancestrais, daqueles que foram exterminados por defender as suas terras. Minha mãe sempre me contou que sua bisavó era indígena, não sei de qual povo, porque tentaram matar a nossa história. Mas sei que a força que me impulsiona a lutar vem dos meus antepassados.

Aqueles primeiros três anos que passei na região das serras foram os mais marcantes: não havia professores, precisei ter muita força de vontade para aprender a falar yanomam, repetindo com os indígenas palavra por palavra. Passei aquele período quase integralmente com eles, até que engravidei do meu companheiro, um cozinheiro francês, que eu havia conhecido em Boa Vista (ele viera ao Brasil de mochila nas costas, para conhecer a Amazônia).

Atravessei o primeiro mês de gravidez ainda na região das serras, mas emagreci muito, não conseguia comer quase nada. Foi muito difícil dizer aos yanomamis que eu precisaria me ausentar dali em diante, porque eu já havia estabelecido uma relação muito profunda com todas as aldeias que atendia. A última caminhada longa que fiz foi para tratar um senhor que havia sido picado por uma jararaca. Primeiro, me disseram que ele estava num xapono (casa comunitária onde os yanomamis se reúnem) a seis horas de caminhada, subindo a serra. Uma vez lá, descobri que precisaria caminhar outras quatro horas para encontrá-lo – o que eu faria de bom grado, se não estivesse exausta por causa da gravidez. Eu já não aguentava mais subir montanhas, pedi que trouxessem o senhor até mim – o que foi interpretado como uma recusa. Um yanomami apontou uma flecha na minha direção, deixando claro que não me restava outra opção a não ser continuar em frente.

E Caminhei umas dez horas naquele dia, me senti mal, tive tontura, mas consegui chegar antes do anoitecer. Respirei fundo, fui até a rede do velho e verifiquei o local da picada. Apliqueilhe soro com antídoto, depois fui para o centro da casa, sentei ali no chão e desmaiei. Quando voltei a mim, as crianças me olhavam assustadas. O velho chegou a sangrar pela boca, de tão grave que era a picada, mas acabou sobrevivendo. Na volta, eu ainda precisei caminhar mais doze horas.

Dias depois, fui embora. Foi difícil me despedir e dizer a todos que a partir dali eu iria trabalhar com os yanomamis do Amazonas, mais perto da minha nova casa. A gravidez me impedia de seguir na serra, mas eu sempre acreditei que retornaria. Continuei conectada com eles pelos sonhos – e também pela radiofonia, por onde nos falávamos. Em 2020, a saúde yanomami, que vinha piorando gradualmente, entrou em crise aguda.

De início, questionei: como puderam piorar o que já não era bom? Mas não havia nada de surpreendente naquela situação. Tratava-se, na verdade, do plano explícito de um governo genocida em que o lucro é maior do que a vida. Em plena crise da Covid, o território yanomami enfrentava uma nova invasão garimpeira – a exemplo do que ocorrera nos anos 1980 –, e bem próxima da comunidade onde eu tinha vivido coisas tão lindas. O posto de saúde em que eu atendia foi fechado por um ano e quatro meses. Eu me sentia péssima por estar longe, sem poder ajudar tanto. Em 2021, o líder yanomami Davi Kopenawa conseguiu pressionar o Ministério da Saúde para que o Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena) reabrisse o posto, mas qual profissional iria atuar por lá? Ainda mais naquele momento, em que as condições eram as piores possíveis.

Uma semana antes eu havia sonhado que estava lá, e que próximo do posto havia muitas pessoas não indígenas construindo casas, como se estivessem abrindo uma cidade no coração da floresta. Acordei assustada, e horas depois recebi uma mensagem por áudio do filho do principal tuxawa (líder) daquela região. Ele havia usado o celular de outro yanomami e o ponto de internet do garimpo para pedir socorro. Contava ter testemunhado a morte de muitas crianças. Decidi que eu precisava voltar.

Em agosto de 2021, eu retornei para a região das serras depois de seis anos. Era uma infinidade de sentimentos no meu coração: revolta, tristeza e ao mesmo tempo alegria de reencontrá-los, apesar de ser um momento tão duro na vida deles. O percurso de helicóptero foi assustador, chorei enquanto sobrevoava um dos maiores garimpos da região: vi a devastação das terras onde eles viviam, era uma tragédia ambiental, mas sobretudo uma tragédia humana, o rompimento da sociedade deles tal como a conhecíamos. “Você sabe para onde está indo?”, o piloto do helicóptero me perguntou, pelo fone. “O posto de saúde é uma casa abandonada no meio do nada. Tem certeza de que você vai ficar lá?” Sim, eu estava voltando para a minha casa.

De fato, o posto estava abandonado, revirado, com portas e janelas caídas, o mato invadindo a casa. Fizemos um mutirão: eu, um técnico de enfermagem e os yanomamis. Recolocamos as portas e pregamos prateleiras para os remédios – alguns dos quais eu mesma havia comprado.

Com o posto reerguido, recomeçamos os atendimentos – a comunidade tem quase quinhentas pessoas, divididas em oito aldeias. Havia crianças vomitando vermes – a forma aguda da infestação por ascaridíase – e dezenas de pessoas com sintomas respiratórios. Era um surto de pneumonia. Realizei testes de Covid, vários com resultado positivo. Foram dias intensos e noites sem dormir, dez crianças internadas no posto, todas com Covid, e nós com um único tubo de oxigênio de tamanho pequeno. Tudo estava acabando, os remédios, as seringas. Eu escrevia bilhetes e pedia aos agentes de saúde para irem até outro posto que ficava a um dia de caminhada em busca de mais remédios e seringas – mas eles também tinham pouco material, nada era suficiente.

Comecei então a usar os remédios da floresta e a chamar os xapori (pajés) para nos ajudar porque eu já não tinha mais esperança nos meus remédios. Expliquei a eles que a Covid era uma nova xawara (doença epidêmica) e que a contaminação deveria ter sido causada pelos garimpos das cercanias, já que havia um garimpo a oito horas dali, que era rota de passagem para outra aldeia.

Antes de eu ir embora, fizemos uma reunião com moradores de todas as aldeias daquela região para falar sobre os riscos do garimpo e sobre técnicas de prevenção de doenças. Os velhos alertaram os jovens de que a floresta não pode ser vendida, que as mulheres precisam ter água limpa para caçar os caranguejos nos igarapés e que as crianças precisam de água limpa para beber.

Três meses depois, em novembro de 2021, o garimpo se instalou próximo do posto. O aliciamento dos jovens é algo absurdo: eles ficam deslumbrados com as armas e ferramentas que eram quase inacessíveis, como lanternas, facas, machados e, claro, bebida alcoólica, que serve para aumentar ainda mais os conflitos internos. O que temos visto nessas comunidades em que o garimpo se instalou é um desequilíbrio sem limites de toda a ordem social. Nos últimos quatro anos foi brutal a mudança no modo de vida. Retornei uma vez mais à comunidade em março de 2022. Eu estava lá para realizar a primeira campanha contra a Covid: sim, enquanto parte do mundo já recebia o reforço da vacina, aqueles indígenas não tinham tomado sequer a primeira dose. A situação era muito grave em toda a região das serras. Além da falta de vacina para Covid e de medicamentos para verminoses, havia agora um aumento de desnutrição em razão da ruptura do modo de vida deles. O som e as vibrações do maquinário do garimpo espantam os animais, inviabilizando a caça. Em paralelo, a água é contaminada com o mercúrio usado para separar o ouro de outros minerais, devastando a pesca. E as piscinas residuais da atividade garimpeira viram celeiros para a reprodução de mosquitos que transmitem a malária – uma doença que debilita demais, impedindo os indígenas de buscar alimentos na floresta. O resultado é a fome.

Consegui fazer com que a maior parte deles viesse ao posto – menos os da aldeia do grande líder (novamente, prefiro não mencionar o nome, para protegê-los). Me avisaram pelo rádio: “Minha filha, você precisa vir até nossa aldeia, os garimpeiros acabaram com o caminho que havia e muitas mulheres não querem atravessar a lama do garimpo carregando as crianças. Fora isso, os idosos não querem passar perto dos xõmi thë pë [povo inimigo].” Eu também não queria passar na lama do garimpo, ver aquele horror do alto já me fizera chorar, mas a vacina estava ali, e eu não podia esperar muito tempo, porque o gelo que a conservava acabaria derretendo.

Disse então que iria. Os indígenas escalaram sete yanomamis, todos armados com espingarda, para me acompanhar. A cerca de vinte minutos do posto, avistamos os primeiros garimpeiros: haviam se instalado exatamente no local do meu sonho de meses atrás. Contei sete máquinas ligadas e nove buracos grandes de água amarela, com um único e frágil caminho de terra no meio, entre os buracos. Passamos por cima de motores ligados e de mangueiras gigantes. Mais adiante havia um helicóptero e vários barracos de lona, com antena de internet e televisão ligada. Creio que ter visto entre 70 e 100 pessoas – isso porque era um garimpo recente, com apenas três meses de extração. Havia algumas mulheres.

Chegamos na aldeia ainda de dia. Encontrei ali um velho que é um dos maiores xapori da região. Ele havia fugido da sua aldeia depois que o garimpo avançou contra sua casa. É o único sobrevivente do Massacre de Haximu.[1] Esse homem sabe exatamente a dor que o garimpo traz: a degradação vai muito além do que é feito com as terras, é o desequilíbrio de uma sociedade colocada à beira do extermínio.

Em novembro de 2022 eu retornei à serra para ações emergenciais, lutando como um soldado sem saber largar as armas, mas exausta em meio a tanta dor. Em janeiro de 2023, eu estava lá dentro quando o presidente Lula visitou a Casa de Saúde Indígena, em Roraima. Foi muito importante porque fez o mundo finalmente olhar para essa situação calamitosa. Além disso, fez o Estado brasileiro retomar o protagonismo nessas ações de saúde.

Estamos no auge de uma transformação crucial para o futuro do planeta. Proteger os yanomamis não é apenas uma questão de direitos humanos. É uma defesa do direito à vida. De todos. Humanos, bichos e plantas. É preciso garantir aos povos originários o direito de continuar protegendo as florestas que restam, ou não será possível evitar a catástrofe planetária.

Quando um xapori yanomami faz um trabalho espiritual, ele garante o equilíbrio do mundo, evitando que o céu caia sobre a floresta, como já ocorreu, segundo lendas do passado. É por isso que os yanomamis veem a si mesmos como “o povo que segura o céu”. Não é um acaso.

 

Fonte: Folha de São Paulo

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/para-que-o-ceu-nao-caia/

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