Opinião

Heroínas da sobrevivência: consequencialismo sobre as trabalhadoras da enfermagem

Sob qual perspectiva deveria ser feita a análise econômica do direito acerca do piso salarial

A pretensão do presente artigo é grandiosa, dizer aos iluminados ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal qual deve ser o foco de suas análises. Contudo, neste país empobrecido e desigual, há sempre algo diferente na perspectiva do outro.

Nos últimos anos, o STF tem lançado como recurso argumentativo em suas decisões a chamada Análise Econômica do Direito, que seria basicamente a análise das consequências econômicas das normas jurídicas. Trata-se de aspecto primordial do consequencialismo jurídico defendido por Richard Posner, jurista americano e professor da Universidade de Chicago, autor dos livros “Economic Analysis of Law” (9ª ed., 2014) e “The Economics of Justice” (1981).

Tal análise é muito utilizada principalmente em decisões que envolvem o Direito do Trabalho, uma vez que o trabalho é a principal relação do sistema capitalista, todos os seres humanos trabalham e todas as empresas precisam da força de trabalho para produzir, e é por meio do trabalho que as pessoas obtêm meios financeiros para a sua sobrevivência.

Nesse ponto, é necessário o reconhecimento de que o trabalho escravo é uma das inúmeras formas de trabalho existentes e que foi essa a forma escolhida para sustentar a economia brasileira até 1888. E o que afasta o trabalho escravo do trabalho decente hoje não é a Lei Áurea, mas sim a regulação do trabalho, o Direito do Trabalho. Ou seja, quanto mais se eleva o patamar civilizatório, mais direitos são conferidos aos trabalhadores, mais distancia-se do trabalho escravo e aproxima-se do que Gabriela Neves Delgado chama de direito fundamental ao trabalho digno. Ainda, o que leva as pessoas a se sujeitar a trabalhos não dignos é a vulnerabilidade financeira, não há liberdade quando as opções são morrer de trabalhar ou morrer de fome.

A mais recente decisão em que o STF lançou mão do consequencialismo jurídico e da análise econômica do Direito foi na suspensão da Lei 14.434/2022, que alterou a Lei 7.498/86 para regulamentar o piso nacional do enfermeiro, do técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e da parteira, conforme determinado pelo §12º, do art. 198, inserido na Constituição Federal por meio da EC 124/2022. Em síntese, o ministro Luís Roberto Barroso determinou a suspensão da lei pela possibilidade dela (i) violar a autonomia e higidez financeira dos estados e municípios; (ii) impactar a empregabilidade no setor e (iii) a prestação de serviços de saúde. Sua decisão foi referendada em plenário virtual por sete ministros, contudo o único que apresentou voto foi o ministro Gilmar Mendes.

A decisão e o voto impressionam tanto pelo contorcionismo argumentativo, quanto pela sua capacidade de revelar neles mesmos que as razões de decidir não se sustentam. O ministro Barroso resumidamente argumenta que teme pelas possíveis consequências da lei, mas admite que não há “dados oficiais sobre demissões no setor”, que há uma “expectativa de fechamento de leitos” “a se confirmar”, que tudo se trata de uma “ameaça de demissões em massa e de redução da oferta de leitos hospitalares” e que toma a decisão pela suspensão em razão dos “eventuais impactos negativos da adoção dos pisos salariais impugnados” com base em informações dadas pelas “entidades representativas do setor”. Ou seja, os argumentos lançados para suspender os pisos salariais não são baseados em evidências concretas, mas em ameaças, como foi corretamente nomeado pelo exmo. ministro.

Com o devido respeito, as razões de decidir são um simples exercício de futurologia, sem qualquer lastro na realidade, como se revela no trecho “eventuais impactos negativos”. Aliás, o único lastro na realidade remonta justamente à história das lutas políticas dos trabalhadores e da sociedade civil como um todo. As ameaças feitas por empregadores sobre impactos econômicos negativos são sempre lançadas quando se pretende o avanço de algum direito social. Seja durante o processo pela abolição da escravidão, uma vez que era o trabalho escravo que sustentava a economia brasileira, seja quando da aprovação da PEC das domésticas, ou mesmo da própria Constituição de 1988, que foi responsável pela elevação do patamar civilizatório mínimo e modernização do Estado brasileiro, mas é sempre alvo da infundada acusação de que “não cabe no PIB”.

E aparentemente é essa a perspectiva que o Supremo Tribunal Federal tem adotado e, como consequência, anda decidindo por desidratar a Constituição para ela caber no PIB. Perspectiva porque a ciência econômica não é uma ciência exata, e qualquer análise do Direito pela ótica econômica passará necessariamente por uma corrente de pensamento, ainda mais quando a análise é feita com base em previsões econômicas. A história recente mostra que previsões são altamente falhas e geradas com base na ideologia política de quem as faz, como por exemplo a previsão de cotação do dólar a R$ 2 em caso de eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018[1].

O grande problema é que o espectro sob o qual o Supremo Tribunal Federal deve analisar os casos que chegam à corte é o da Constituição. Não é razoável suspender uma lei porque os riscos econômicos não são proporcionais ou porque, segundo o ministro Gilmar Mendes, “geram consequências nefastas ao setor privado”. Isso porque o Estado democrático de Direito, tal qual posto na Constituição de 1988, colocou no centro da proteção jurídica o indivíduo, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF). Então, a pergunta que deve ser feita é: quais as consequências da lei sobre os indivíduos? Para responder essa pergunta, é preciso olhar a quem a lei se dirige.

A enfermagem é composta por enfermeiros, técnicos, auxiliares e parteiras, e é predominantemente feminina[2]. É tão feminina que a própria lei utiliza o termo parteira no feminino. De acordo com dados trazidos na decisão do ministro Barroso, “o aumento salarial necessário para o atingimento do novo piso dos enfermeiros seria de apenas 10%, enquanto, no estado da Paraíba, o aumento seria de 131%. No caso dos técnicos de enfermagem, as entidades hospitalares do estado de São Paulo atingiriam o piso com um aumento de 40% em sua média salarial; no estado da Paraíba, seria necessário um aumento de 186%”. Ou seja, se o novo piso para enfermeiras é de R$ 4.750, uma enfermeira de São Paulo ganha R$ 4.322,85 e a da Paraíba R$ 2.052,23. As técnicas de enfermagem, por sua vez, ganham R$ 2.367,60 em São Paulo e R$ 1.163,98 na Paraíba. Se os valores apresentados, de 2021, estiverem mantidos até hoje, significa que a técnica de enfermagem na Paraíba ganha menos de um salário mínimo. Isso tudo numa realidade de inflação alta em que, de acordo com o Dieese, o salário mínimo necessário é de R$ 6.298.91[3] e de uma Constituição que tem como objetivo erradicar as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, da CF).

Nesse cenário, as consequências nefastas e os impactos econômicos da ausência da lei quem sofrem são as trabalhadoras. Vale lembrar aqui que uma das consequências da vulnerabilidade econômica das mulheres é a violência doméstica[4], pois muitas mulheres mantêm os relacionamentos em razão da dependência financeira ou por não ter renda para as necessidades mínimas. Com o devido respeito, essa decisão demonstra que os ministros e ministras do STF nem ao menos seguem o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero que reconhece a desvalorização do trabalho de cuidado e as perdas que a desigualdade de gênero causam na economia[5].

Destaca-se, como apontado pelo ministro Gilmar Mendes, que é possível para os estados e municípios o equacionamento para “adaptarem seus compromissos às realidades orçamentárias”, bem como para os entes privados se adaptarem, como sempre se adaptaram, seja absorvendo os custos, seja repassando-os para o consumidor. Contudo, para as mulheres trabalhadoras, a adaptação é trocar carne por pés de galinha[6]. Isto significa que o piso salarial, além de norma trabalhista, é norma de direitos humanos, pois garante uma existência digna, e portanto de aplicação imediata, devendo condicionar a política fiscal e não o contrário[7].

Nesse aspecto, é primoroso o voto proferido pelo ministro Edson Fachin ao acompanhar a divergência inaugurada pelo ministro André Mendonça: “Nada justifica, teórica ou empiricamente, que esta Corte Suprema tenha melhores condições de definir o que os próprios representantes do povo, com a reivindicação da sociedade civil organizada em diversas etapas do processo legislativo, deliberaram”. De fato, o contrário disso é a negação do texto constitucional que consagrou o princípio da participação da sociedade civil, como tem essa participação em sua própria gênese. Em outras palavras, “nem quando uma maioria constitucional tem, aos olhos desta Suprema Corte, legitimidade para assegurar direitos fundamentais sociais, especialmente os trabalhistas, é sinal de que uma minoria foi por ele privilegiada”.

 

Fonte: Jota Info

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/heroinas-da-sobrevivencia-consequencialismo-sobre-as-trabalhadoras-da-enfermagem-29092022

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